A lição de seu Juca

04:30. Esta é a hora em que toca o despertador na casa do seu Juca. Por estar no auge de sua sétima década de vida e por sofrer de uma artrose que castiga quase todas as juntas de seu corpo, seu Juca levanta com alguma dificuldade de sua cama, veste os chinelos surrados que ganhou da esposa oito anos antes em comemoração às suas bodas de ouro e se dirige ao banheiro para iniciar os preparativos para mais um longo dia de trabalho. Assim que termina sua higiene matinal, acorda sua esposa com um beijo e se encaminha para a cozinha para preparar o café. Há exatos cinquenta minutos após despertar, seu Juca já está vestido em frente ao portão de sua casa acenando para a mulher antes de pegar as duas conduções que o levarão ao seu local de trabalho. As sete horas da manhã já está a postos em frente ao chafariz principal da praça que traz a imagem de Bento Gonçalves montado em seu imponente cavalo de cobre. Seu Juca bem que tentou encontrar consolo em outras profissões ao longo da vida: carpinteiro, ajudante de construção civil, operador de máquinas, borracheiro. Mas foi com o carrinho de pipocas que encontrou sua maior realização. Aos 10 anos de idade Juquinha, como era chamado na família, já fazia este mesmo trajeto com o pai, seu Irineu, que ensinou tudo o que ele sabe hoje sobre a arte de fabricar pipocas. Temperatura do óleo, qualidade do milho, material das panelas e dos recipientes que as recebem depois de prontas, local apropriado para a venda, etc. Tudo nos mínimos detalhes. Seu Juca lembra com tristeza do trágico dia do falecimento do pai após um carro ter perdido o controle e o atropelado enquanto voltava para casa com seu carrinho de pipoca. A imagem permaneceu por muito tempo na mente de seu Juca principalmente pelo estranho cenário que se formou na Rua dos Esquecidos, local de sua moradia. O número de pipocas espalhadas pelo chão era tão grande após o acidente que parecia se tratar de uma rua coberta por neve. Depois disto, por precaução, seu Juca prefere manter o carrinho acorrentado em uma estrutura metálica que serve de suporte para eventos culturais na praça onde trabalha para evitar locomover-se com ele. Cinquenta anos trilhando a mesma rotina. Sem faltar um único dia!! O que leva alguém a persistir na mesma profissão por tanto tempo? Você deve estar se perguntando: quem em seu juízo perfeito come pipoca às 07:00 da manhã? Por que então chegar tão cedo? Nas palavras do próprio seu Juca, “Quanto mais tempo estiver na praça, mais serei lembrado. E mais pipoca será vendida!”. Fico pensando nos milhares de trabalhadores que saem de casa muito antes do sol nascer para seu ofício e passam anos e anos nesta mesma rotina. Sem dúvida muitos por necessidade em receber o salário no final do mês. Mas e o seu Juca? O que o mantém com essa extrema disposição aos 75 anos de idade? Certa vez, ainda nos tempos da graduação, ouvi de um paciente que internara no hospital após uma recidiva de um câncer de intestino algo que jamais esquecerei. Entre uma pergunta e outra, seu Antenor Santos da Silva (continuo com essa estranha sensibilidade na memória com alguns pacientes de lembrar nome, sobrenome, filiação, endereço, etc.) disse-me enquanto eu ajeitava o colarinho de minha camisa desgrenhado por ter sido chamado durante a madrugada para avaliar um paciente: “Faça o que você ama e nunca terá que trabalhar um dia na vida!”. Fiquei pensando nesta frase por dias a fios tentando absorver a mistério impregnado naquelas palavras. Será que seu Antenor percebeu algo em mim além do sono e do cansaço? Será que eu não amava o que estava fazendo? É lógico que por passar grande parte de nossas vidas trabalhando deveríamos procurar por algo que realmente fossemos apaixonados por fazer. Mas por que muitas vezes questionamos se gostamos realmente do nosso trabalho? E por que para seu Juca isto é tão fácil? Muito provavelmente por que ele não se preocupou com o que os vizinhos iriam pensar ao vê-lo empurrando um carrinho de pipocas em pleno sábado, não pensou em impressionar a garota do andar de cima conhecida no prédio por seus lindos pares de pernas, não se interessou em comprar uma casa maior por não haver mais espaço na anterior para acomodar tantos bens materiais, não preocupou-se em não andar com o carro do ano; pelo contrário, poder andar na sua idade e ainda assim conseguir empurrar um carrinho de pipocas já é sentido como uma benção! A história de seu Juca serve como exemplo para todos aqueles que buscam um sentido para o trabalho e um significado para a vida. Precisamos dar menos importância para as nossas camisas , se estão engomadas ou não, e pensar um pouco mais em comer pipocas.

A morte não tira férias

 

Final do mês de janeiro. Mais um final de um longo dia de trabalho. Chego em casa procurando espaço entre as roupas jogadas na sala da semana anterior e as caixas de papelão que estão sendo usadas como depósito temporário para os materiais da reforma do consultório. Percebo um espaço entre a bagunça de roupas no sofá e desabo desejando ficar naquela posição por longas horas. Ligo a televisão. “Acidente mata duas pessoas após queda de avião do sul do Estado”. Procuro me desligar da notícia como todo bom passageiro de classe econômica que depende destas aeronaves pelo menos algumas vezes ao ano tentando manter a ingênua ideia de que não enxergando acidentes eles não acontecerão. Digito a senha de destravamento da tela de meu celular para tentar deslocar meus pensamentos para algo diferente. Dou de cara com um vídeo, destacado por internautas, sobre um pedido de casamento feito por um piloto de ultra-leve durante um voo com a namorada. Até então algo corriqueiro em redes sociais a não ser pelo grande número de visualizações. Percebo em um dos comentários logo abaixo o motivo de tanto sucesso: “Ao mesmo tempo lindo e trágico”. Meus pensamentos retrocedem a milhas de velocidade. Elevam-se a pés de altitude. Percebo-me espantado e assombrado, reação esperada ao buscar conexões em fatos isolados que insistem em parecer interligados. Avião, queda, número de visualizações, lindo, trágico. A matéria na televisão!! Era o mesmo avião. O rapaz de apenas 22 anos que havia feito um pedido de casamento a noiva há um ano encontrava-se naquele mesmo avião envolto em uma pilha de ferros distorcidos. Senti meu estômago embrulhar e levantei do sofá bem antes do tempo previsto. Aquela sensação estranha, de enjoo, de sufocamento. O que era aquilo? Aviões caem todo dia. Está bem, confesso que sempre me causou mal-estar saber sobre a existência desta possibilidade, pois também faço uso deles (muito a contra-gosto diga-se de passagem…). Porém neste dia foi diferente. Não só para mim, mas para as 254.788 pessoas que assistiram ao vídeo. Era uma notícia difícil de escutar.
Invariavelmente temos dificuldade em lidar com a morte. Uns mais; outros mais ainda. Principalmente nesta situação onde estão envolvidas pessoas jovens, saudáveis, bonitas, apaixonadas. A maneira como um acidente como este nos toca demonstra que nossas lindas e apaixonantes vidas não estão imunes a tragédias. Podemos amanhecer calmamente em um sábado ensolarado com vida e acordar presos a ferragens na mesma noite sem ela. Se acontece com um casal jovem, lindo, feliz e dispostos a demostrarem o que sentem um pelo outro que dirá conosco que reclamamos por estender um pouco mais a jornada de trabalho diária ou por não encontrar espaço para sentar em um sofá tomado de tralhas. No meu caso, a situação ainda é mais delicada. Estou muito próximo a eles. Não piloto avião e não conheço nenhum dos dois. Mas sonho alto. Voo diariamente em pensamentos. Vejo-me próximo também ao momento de pedir em noivado minha querida quase esposa. E tenho medo da morte. Principalmente desta morte que chega fora da ordem cronológica dos fatos, da vida, de tudo. Que surpreende por sua brutalidade, por sua covardia, por seu descaso com o amor, com vida. Somos invadidos a todo instante por sua presença e tentamos voar fora de seu radar com o intuito de confundi-la. O que fazer a esse respeito? Não andar de avião? Não ligar a televisão? Não deitar no sofá? Creio que não ajude. Precisamos de coisas belas, de amor, de pedidos de casamento seja em aviões, no restaurante com os amigos, na praia, em frente ao pôr do sol. Precisamos manter o coração sempre quente para que a morte não esfrie qualquer possibilidade de alçarmos novos vôos em direção à vida.

Isadora no gelo

 

“A beleza salvará o mundo”. Talvez nunca esta famosa e pretensiosa frase de Dostoiewski tenha feito tanto sentido para mim como no dia de hoje. Apreciador incansável das obras deste que foi um dos mais inovadores artistas de todos os tempos, nunca pensei que um dia fosse mergulhar nas profundezas de suas ideias de maneira tão intensa e fascinante. Desde minha apresentação a este autor, no magnífico Crime e Castigo, modifiquei a maneira de enxergar alguns aspectos de nossa ínfima e curta existência. Vivi como se fosse o próprio Raskólnikov a angústia que foi dar continuidade a sua vida após o assassinato da velha agiota e, invariavelmente, de sua irmã Lizavéta. A necessidade em fazer algo importante na vida, embora por vias tortuosas e condenáveis pensando na história do personagem, faz  com que em algum aspecto seja possível entrar em sintonia com o mesmo durante boa parte do livro o que o torna tão fascinante e aterrador ao mesmo tempo. Voltando ao início do texto (e ao motivo que me fez escrevê-lo), deparei-me com o verdadeiro sentido de sua frase durante uma garfada e outra de um espaguete a bolonhesa feito as pressas em virtude dos movimentos acelerados dos ponteiros do relógio (tenho me deparado frequentemente com situações como essa em que o tempo parece não ser suficiente para apreciar tranquilamente uma boa refeição). Motivado pela grade de programação de uma televisão aberta que mostrava, no exato momento em que me esforçava para enrolar o macarrão com o garfo apoiado na colher (atributos conquistados por convivência com italianos natos) um programa de auditório com entrevistas de cunho pejorativo para dizer o mínimo. Visto do que se tratava, troquei rapidamente de canal e encontrei Isadora Williams, a única atleta brasileira na história das Olimpíadas de Inverno a entrar em uma pista de gelo. Não precisei de mais nada. Nem de massa, nem de garfo e menos de colher. Senti um desconforto na garganta como se vários fios de macarrão estivessem esforçando-se para descer  que nada tinha a ver com o meu almoço quando vi aquela menina deslumbrante que levava a bandeira do Brasil estampada em seu vestido. Ao som de Dark Eyes, famosa canção russa, Isadora parecia flutuar na pista. Foram vários saltos e piruetas até o aplauso final de uma multidão que já se encontrava em pé bem antes de seu final (incluindo quem vos fala que se mantinha paralisado em frente ao televisor com alguns fios de macarrão escorrendo pela camisa branca). Pensei em tudo que essa menina de apenas 18 anos deveria ter passado para estar hoje em um lugar onde brasileiro algum havia pisado em toda a história das Olimpíadas. Em um país onde o que dita as regras é o futebol, com patrocínios estratosféricos do Governo para construção de estádios e todo o necessário para impressionar em uma “Copa do Mundo”, imagino a dificuldade que Isadora deve ter encontrado para conseguir acreditar que era possível calçar um par de patins e competir. A cena prosseguiu com um abraço de seu treinador e um não muito esperançoso sorriso da atleta que para mim já era a maior de todos os tempos. 40.37 surgiu na tela e o que se viu em seguida foi um total desapontamento de todos que cercavam Isadora. Para quem nunca conseguiu se erguer do chão com um patins nos pés acreditei que a nota era excelente, apenas 9.63 pontos da nota máxima. Mas não era. Isadora não estava classificada nem entre as 24 melhores e ficou fora da grande final. Mas isso era o menor dos problemas. Para mim, claro. Imaginei como poderia estar sendo para ela lidar com a desclassificação e logo me tranquilizei ao perceber o que havia acontecido naquele momento de significativo para a história brasileira da patinação no gelo. Naqueles poucos instantes em frente a televisão fui salvo. Salvo pela música escolhida para apresentação (Dark Eyes). Salvo pela bandeira brasileira que deslizava na neve. Salvo pela beleza e pela determinação que jorrava dos olhos de Isadora. Agradeci a patinadora que salvou o meu dia de quarta-feira e possivelmente o de muitos brasileiros que assistiram ao que acabara de acontecer.

Atividade física e doença mental

A prática de atividade física regular está associada a benefícios fisiológicos, psicológicos e sociais bastante conhecidos. Diante da relação entre sedentarismo e aumento do risco de inúmeras doenças a atividade física tem se tornado uma área de grandes investigações. Há benefícios  diretamente comprovados do exercício como prevenção de doenças coronarianas, hipertensão, diabetes melito e osteoporose. Alguns estudos têm demonstrado que a atividade física pode ser uma estratégia eficaz para o tratamento e prevenção de doenças psiquiátricas como depressão e transtornos de ansiedade.

Diante da refratariedade de determinadas doenças psiquiátricas que pode chegar a 25% com tratamento farmacológico em transtornos de ansiedade e até 50% em quadros depressivos a possibilidade de resposta com métodos não farmacológicos como o exercício físico traz nova luz para o tratamento dos pacientes e melhora no prognóstico e qualidade de vida.

DEPRESSÃO E SEDENTARISMO

Conforme conhecidamente estabelecido, o sedentarismo está correlacionado com a morbidade nos quadros depressivos. As pesquisas mostram que diferentes modalidades de atividades físicas e a intensidade podem influenciar de forma direta nos efeitos da atividade física. O exercício aeróbico de intensidade moderada pode ser considerado um tratamento eficaz para depressão de nível leve a moderado. Já os efeitos do exercício de baixa intensidade são comparáveis ao efeito do placebo e não apresentaram respostas significativamente conhecidas.

Além dos seus efeitos nos sintomas da doença, o exercício proporciona benefícios fisiológicos e psicológicos que contribuem para uma melhora global nos quadros relacionados à depressão.

ANSIEDADE E ATIVIDADE FÍSICA

Existem algumas evidências que apontam para o papel da atividade física como componente importante no tratamento dos transtornos de ansiedade.

Estudos com a utilização de exercícios aeróbicos vêm demonstrando resultados superiores ao uso de placebo no tratamento da síndrome de pânico. O exercício pode ser usado para reduzir a frequência e a intensidade da ansiedade e dos ataques de pânico. A possibilidade de associação entre o uso de medicações associado ao exercício parece ser uma boa estratégia para o tratamento destes transtornos.

A atividade física provoca alterações fisiológicas sobre os níveis de endorfinas e monoaminas, altera os níveis de cortisol e regula positivamente fatores neurotróficos que estão envolvidos nos quadros depressivos. Desta forma, a atividade física atua como um agente antidepressivo e ansiolítico auxiliar no tratamento e pode contribuir para um grau de resposta mais significativo relacionado a algumas doenças psiquiátricas.

A matemática é exata

15:45 de uma tarde que insistia em não passar. Cláudia, minha nova paciente, havia desmarcado seu horário das 15h na noite anterior em virtude de um mal estar após um passeio de barco com o noivo. Enrico, meu paciente das 16h, filho de uma grande amiga de infância, avisou-me por mensagem de texto, minutos antes de seu horário que não compareceria por motivo de força maior. O que vem a ser um motivo de força maior? Poderia meu paciente ter sido levado por um inesperado Tsuname dos Pampas indo parar ao lado do cargueiro Rainha do Mar no Porto de Rio Grande? Talvez um tornado da linhagem Katrina-Sul tenha o arrastado para um local distante do consultório impedindo que chegasse a tempo para consulta? Ou quem sabe um meteorito oriundo de uma galáxia distante caíra no quintal de sua casa carbonizando Harold, o motorista que costuma trazê-lo às consultas? Estes sim seriam motivos de força maior!!! Deixemos de lado as improváveis possibilidades. Quero ater-me no momento exato entre estas duas horas livres cada vez mais raras do meu dia. A carga de trabalho que eu, você e o entregador de gás transportamos nos ombros é assustadora! Somos devorados diariamente pelo gigante e assustador monstro chamado dinheiro. Começamos jurando não nos rendermos . Objetivos discretos, carga horária limitada, poucos clientes, ginástica três vezes por semana e almoço no domingo com a família. Seis meses depois já estamos com uma filial da empresa no município vizinho com entrega de gás 24 horas por dia incluindo domingos e feriados. Ginástica só no Vida e Saúde aos sábados pela televisão. Almoçar apenas é o que rezamos ser possível. Tudo em prol de mais dinheiro e felicidade. Duas palavrinhas que não combinam! Opa, gritou seu Rui no sofá da sala lendo o texto agora. Será que eu entendi direito? Este cidadão está querendo me dizer que mais dinheiro vai me deixar infeliz? Sim. Exatamente o que o cidadão aqui está dizendo. Calma seu Rui. Tentarei explicar-me. Vejo cada vez mais pessoas trabalhar horas a fio para aumentar não mais do que 20-30% do orçamento mensal e deixar escapar como argila entre os dedos do artesão a tão procurada felicidade. O tempo se tornou nosso pior aliado. Mais dinheiro, menos tempo. Menos tempo, menos felicidade. Isso todos concordam. Poderíamos com uma simples conta matemática isolar mais dinheiro de um lado e passar menos tempo para o denominador da fração menos tempo x menos felicidade. Cortaríamos menos tempo com menos tempo que resultaria em, pasmem: MAIS DINHEIRO = MENOS FELICIDADE! “A matemática é exata, meus filhos” diria minha saudosa professora de aritmética do colegial. Ao contrário do que pregava, dona Beatriz trabalhava arduamente dia após dia como se desacreditasse neste simples cálculo que ela mesmo nos ensinava. Assim como a grande maioria de nós. Isolamos a todo custo o mais dinheiro não importando o que cortaremos na divisão final. Incrível não? Nem tanto. Para tristeza dos socialistas e matemáticos de plantão não há como lidar com essa questão com um simples cálculo matemático. Há emoções ocultas por trás do dinheiro que a própria razão desconhece. Sucesso, mulheres, fama, mulheres, poder, mulheres e, em alguns casos, mulheres para citar apenas algumas. “O ser humano é complicado meu garoto”. É o que costumo ouvir de meu vizinho, o Sr. Ludovico, de 75 anos que passa os dias sentado em sua confortável cadeira de praia na sacada de seu apartamento de não mais do que 70m2 a olhar não sei o que durante as 24 horas de seu dia. Dono de uma fortuna incalculável, perdeu tudo após um investimento impensado. Segundo Carla, sua filha caçula, o pai nunca foi tão feliz. Passa os domingos com a neta que mal viu crescer e chora contando histórias à noite para ela. “Antes, não tinha tempo para nada. Era só trabalho e no tempo livre mais trabalho” diz ela. É seu Ludovico, algo me diz que a matemática pode estar certa. Quem sabe um dia com meus 75 anos possa modificar essa maneira dinheirista de pensar. Ou então após perder tudo investindo em ações da Petrobras. Agora não posso. Acabo de ouvir passos na recepção. Preciso chamar Júlia, minha paciente das 17h…

Segunda-feira nunca mais!

Segunda-feira nunca foi um dia fácil. O início da semana geralmente tem destas armadilhas. O alarme que insiste em não tocar ou se desarmar “sozinho”, o café no elevador após um despertar tranquilo com o sol nas bochechas, o bom-humor dos motoristas que nos ensinam novos idiomas em uma avenida movimentada, a receptividade calorosa do chefe que segue cobrando os mesmos relatórios não terminados da semana passada. Enfim, um show de horrores! Mas esta segunda-feira foi diferente. Assustadoramente diferente! Não teve sol, não teve trânsito, não teve chefe. Minha segunda chegou de transportadora! Bateu saudade das anteriores…
Acordei próximo das sete horas em função do despertador interno que insiste em tocar mesmo quando o externo não está programado para tal função. Aproveitando o inesperado despertar dirigi-me até o banheiro para equilibrar alguns líquidos corporais que já em sonho buscavam uma satisfação para retornar o quanto antes ao sono reparador que só as manhãs segunda-feira podem proporcionar. Afinal era meu dia de folga. Era. Quando percebi estava no meio da sala de estar cercado por milhares de caixas de papelão. Tudo o que um dia foi a minha casa estava dentro daquelas caixas. Veio-me um pensamento súbito: estou sendo assaltado! Minha mente sempre funcionou assim. Em um primeiro momento é a desgraça que a invade: assalto, agressão, acidente, doença, atropelamento, morte. Após passados alguns minutos ela me permite perceber que pode existir uma possibilidade de não ser o nosso fim. Pelo menos não agora! Havia escutado passos na noite anterior, porém julguei ser no andar de cima. Teria me equivocado? Poderia o ladrão ter passado a noite encaixotando minhas coisas? Será que ele havia me poupado até agora para um último pedido? E qual seria? “Leve tudo, menos meu iPhone 4S financiado!”, “Meus Picassos são réplicas”, “Mate o Cláudio do 203 que esconde diamantes na caixa da descarga”. Talvez não funcionasse. Aos poucos fui observando que meus pertences estavam perfeitamente em ordem dentro das caixas divididos inclusive por tamanhos. E assim tive certeza que estava lidando com uma quadrilha especializada!!! Antes de partir para agressão física utilizando meus dotes capoeiristas (havia feito três meses de aula na adolescência quando precisei desistir por dificuldades peculiares de alongamento) precisava acordar. Fui me aproximando vagarosamente, para não levantar nenhuma suspeita, da caixa onde estava a embalagem de café para reagir àquela situação quando ouvi uma voz que parecia vir da cozinha. “Não toca nisso!”. “Oh meu Deus!!!” pensei quase em voz alta separando as sílabas mentalmente. Estava vivendo um misto de ilusão e realidade. Não tinha certeza se aquilo estava realmente acontecendo ou era fruto de uma noite regada a licor de baunilha. Resolvi me certificar. “Socorro, ladrão!” gritei imaginando ser salvo pelo justiceiro do sono que me desperta sempre em momentos assustadores (principalmente aqueles em que preciso fugir de meu assassino, mas minhas pernas não me obedecem). “Que isso guri. Tas incorporado?” perguntou minha sogra confirmando-me que não estava sonhando. “Marquei a mudança para hoje aproveitando que é teu dia de folga”. “Oh meu Deus!!!”, pensei novamente, desta vez sem separar as sílabas e com sangue nos olhos! “Chegaram” disse ela abrindo a porta para uma equipe de homens fardados de azul e branco que foram invadindo minha casa. “Irmãos Transportes a seu dispor”. Senti o gosto da baunilha na garganta quando ouvi isso. Um grupo dirigiu-se ao meu quarto onde ainda repousava minhas vestes noturnas e algumas embalagens de amendoim da noite anterior. O outro trio começou a desmontar tudo o que se encontrava fora das caixas e não respirava. Sofá, cama, roupeiro, armário, geladeira, fogão, máquina de lavar. Minha sensação era que eu também seria desmontado a qualquer momento e por isso resolvi puxar o ar e gritar: “Ninguém toca na minha televisão!!”. “Não reparem. Ele não acordou bom hoje” disse minha sogrinha querida fazendo-me sentir um tanto quanto retardado. A operação desmanche demorou cerca de 40 minutos. Olhei para os lados e não vi mais nada. Era apenas eu, meu pijama bege listrado e uma Placar do Lionel Messi atirada onde antes ficava o móvel do telefone. “Te mexe guri. Já estamos indo”. “Indo para onde?” perguntei. Desta vez fiz questão de me impor mas pela honra já quase perdida. “Ora para onde? Para o apartamento novo. Já estão te esperando para montar o guarda-roupa”. “Senhor, onde está vós nesta hora tão difícil?” pensei quase me ajoelhando no único tapete que restara na casa.
E lá fui eu às 10:00 da manhã de uma segunda-feira vestido com uma calça de abrigo, que por sorte ficou caída atrás do junker da área de serviço, a parte de cima do meu pijama listrado e meu chinelo do Grêmio para montar o maldito móvel. Deus castiga. E como… Nunca mais reclamo da minha segunda-feira…

Demi Laura

Hoje foi um daqueles dias que vale a pena ser vivido. Sabe aquela sensação que você tem quando chega em casa à noite de estar realizado sem saber bem o motivo? De pensar que era exatamente isso que você queria desde o começo? O chão desaparece, o corpo fica leve, a cabeça esvazia. Tentarei caracterizar esse frenesi em uma simples frase: FAZER O QUE SE GOSTA! Em meio a um turbilhão político que vivemos em nosso país onde culpados não são punidos, corruptos não são presos e políticos não são outra coisa senão políticos está cada vez mais difícil exercer nossa profissão. A medicina no Brasil está muito próxima da extinção! Pelo menos da maneira que nós médicos a enxergamos. Somos os mais novos bodes expiatórios do atual governo. Nada funciona na saúde por culpa dos médicos. Gananciosos, dinheiristas, petulantes, desumanos. Para ficar apenas no politicamente não-ofensivo. Vejo muitos colegas descontentes com a atual situação do país e preocupados com o futuro da profissão. É tanto Lava-Jato, tanta Petrobras, tanto Mais Médicos que acabo repensando o real motivo de ter escolhido a medicina (e a psiquiatria em especial) para me acompanhar pelo resto dos dias da minha vida. Hoje voltei a lembrar. Laura me fez lembrar.
Esta delicada menina de estatura acima da média para seus 16 anos e peso muito abaixo dela foi-me apresentada três meses atrás em um serviço de Pronto-Atendimento. Estava contida em uma maca na qual revirava-se incessantemente. Seus braços estavam cobertos, mas pude perceber cortes profundos que não lembravam em nada os das pacientes que costumam se auto-mutilar para “chamar a atenção”. Seu cabelo tingido de vermelho cobria boa parte de seu rosto. Era possível ver apenas um dos olhos pintados de um preto marcante. Sentei ao lado da cabeceira de sua cama e perguntei o que estava acontecendo. Laura não respondeu. Olhou fixamente para mim, depois para quem imaginei ser sua mãe e em seguida baixou a cabeça. Entendi seu recado. Colhi algumas informações com a equipe do hospital e, em seguida, solicitei que nos deixassem a sós. Ao fundo ouvia-se apenas o barulho do pigarro de uma senhorinha que esforçava-se com seus cansados braços para erguer-se na cama. Acompanhei sua sombra sobre meu sapato até ela conseguir sentar-se sob quatro travesseiros. Laura olhou para mim e apontou para sua mesa de cabeceira. Perguntei o que ela queria. Não disse nada. Apenas apontava como uma criança que pede o último biscoito do pote no alto do armário da cozinha. Decidi escolher um entre tantos objetos que povoavam sua mesa. Apanhei um caderno e um lápis que repousavam ao lado de uma foto autografada da Demi Lovato (que meses após descobri ser um fenômeno da música teen) quando Laura confirmou com os olhos que eu havia escolhido certo. Começou a escrever. A medida que ia rabiscando o papel girava-o para o meu lado como se pedisse que eu acompanhasse seu acelerado pensamento. Sublinhou uma frase bem no centro da folha que explicava o motivo de estar ali. Laura tentara se matar após ouvir que os pais iriam se separar. O restante do texto dava seqüência ao dia anterior. Correu imediatamente para o banheiro e cortou os dois antebraços com a gilete do pai. A mãe encontrou-a desacordada e a trouxe a emergência do hospital. Desde então perdera a voz. Nada falava. Com ninguém. Disse a ela que imaginava o tamanho de seu sofrimento, mas que talvez fosse necessário entrar em contato com sua dor “interna” para não precisar substituí-la pela dor dos cortes. Laura escreveu no pequeno espaço que ainda restava na folha enquanto as lágrimas caiam sobre o caderno: “POR FAVOR ME AJUDA”.
Saí de lá com dez quilos nas costas. E um milhão de pensamentos. Sei bem como funcionam pacientes como Laura. São impulsivos, de difícil acesso e muito instáveis. Com Laura não seria diferente. Mas era preciso tentar. Afinal de contas por que diabos faço o que faço? Tentar é tudo o que impulsiona para frente!
Ao longo da semana recebi mais duas ligações dos enfermeiros relatando que Laura novamente havia se machucado e continuava sem se alimentar, pois além de se achar feia acreditava estar obesa (era possível visualizar suas clavículas como em um livro de anatomia tamanha sua magreza e assim mesmo irradiava beleza). Ficou mais 25 dias internada até ser liberada.
Hoje foi dia de consulta. Há duas semanas Laura não se corta. Voltou a se alimentar. Parece outra pessoa. Tem planos para o futuro: voltar a estudar e ser modelo. Está preocupada que as cicatrizes nos braços prejudiquem sua carreira. Pensou em tatuá-los. Sorri ao falar isso. Agradece minha ajuda e chora ao lembrar tudo que passou. Despede-se prometendo nunca mais conversar comigo dentro de uma sala de emergência.
Volto para casa com os dez quilos. Desta vez a menos. Nunca imaginei que conseguiria perder tanto peso em tão pouco tempo. Estou certo que Laura ajudou mais a mim do que eu a ela. E é essa certeza que estimula o meu trabalho. A medicina permite isso. A psiquiatria ainda mais. Agradeço a menina de olhos escuros e cabelos vermelhos por me fazer lembrar o que a vida tinha me feito esquecer.